Leia abaixo discurso proferido pelo ministro da Cultura, Juca Ferreira na solenidade de entrega do título de doutor honoris causa a Ailton Krenak, realizada em 18.2.2016, em Juiz de Fora (MG).
Por nada perderia este momento. Ver um indígena brasileiro, ainda mais um indígena como Ailton Krenak, alguém de quem me orgulho como brasileiro, receber um título de doutor honoris causa é algo de uma grandeza difícil de mensurar. Os significados deste momento, porque são muitos, farão reverberar muitas influências positivas sobre nosso Brasil.
Mas não só isso me enche as medidas. Esta homenagem sinaliza para um Brasil diferente daquele que tanto tem maltratado os seus filhos. Com este ato, os nossos indígenas ultrapassaram uma barreira. Já é grande hoje o número de indígenas graduados, com mestrado, doutorado e até pós-doc. Temos hoje um grande número de indígenas escritores e cineastas. Cerca de oito mil indígenas cursam hoje o Ensino Superior no Brasil. Este número é praticamente o dobro de 2010, e não há dúvida de que isso se deve em grande medida à chamada Lei de Cotas, que embora seja de 2012, já vinha sendo praticada por algumas universidades.
Não tenho dúvida de que dominar o código do outro – no caso, do homem branco – e seus sistemas de representação é algo vital para a conquista da autodeterminação de nossos povos indígenas. Esse é um importante caminho para que sejam senhores de seus destinos. Estou convencido de que precisamos dotar os povos indígenas de conhecimentos e de tecnologias que lhes possibilitem relacionar-se com a sociedade contemporânea em pé de igualdade.
Tenho ainda muito mais motivos de grande alegria. Porque este ato também é um reverência do saber acadêmico ao saber tradicional. Este título homenageia a um mestre do Movimento Encontro de Saberes, projeto nacional que tem o objetivo de levar à academia conhecimentos tradicionais. Além da disciplina “Cultura e História dos Povos Indígenas”, Ailton ministra a disciplina “Artes e ofícios dos saberes tradicionais”.
Lembro-me que em 2010 no lançamento do projeto Encontro de Saberes, que realizamos com a Universidade de Brasília, sonhávamos com uma universidade permeável ao saber tradicional, aquele que brota da criatividade que vem das ruas e brota há séculos das comunidades indígenas. Modos de pensar e de fazer que trazem novos desafios, exigem a produção de novos conceitos, e servem como teste para a validade dos critérios universais que são o instrumento por excelência da Cultura Formal. Vejo neste ato também um reconhecimento a esta dimensão do saber. Saber que tanta falta fez para evitar o desastre de Mariana sobre o Vale do Rio Doce, tão caro aos Krenak.
As respostas podem ser universais, mas os caminhos que conduzem a elas são próprios de cada povo.
Muitos países pelo mundo afora uniformizaram suas culturas. Reduziram ou exterminaram sua diversidade, eliminaram tradições, conhecimentos e ancestralidades, base de grande riqueza cultural. Em um cenário internacional, de crescente competitividade e integrada economia de mercado e consumo, o Brasil é um dos poucos países que combinam – ainda que com uma série de tensões – desenvolvimento econômico com o exercício das diferenças culturais. Temos mais 274 línguas indígenas faladas para além do português e dezenas de populações, ainda isoladas da civilização ocidental e moderna, que fascinam o mundo. O Brasil pertence ao restrito grupo de nações que ainda veem sobreviver uma parcela expressiva da diversidade de povos, línguas e costumes que marcaram o território latino-americano antes e depois da chegada dos europeus e africanos.
Não bastasse isso, não pode haver democracia no Brasil sem que os povos indígenas nela estejam incluídos. E isso não se pode fazer sem a preservação de suas culturas, sem a preservação das suas línguas, de suas religiosidades, suas maneiras de ser e de ver o mundo sem garantir e demarcar suas terras.
O Estado brasileiro ainda não é democrático. Temos que ter consciência disto. O Estado brasileiro ainda é um instrumento de dominação de uma parte da sociedade, das elites. As instituições, as regras, as leis, o senso comum, conspiram todos contra as transformações, mesmo quando se sustentam através do voto. As dificuldades são muitas, e de várias ordens.
Digo isso porque tenho consciência dos limites do Estado brasileiro e do governo. Sou governo, mas se nele eu não pudesse expor meu pensamento, nele eu não caberia.
Com a redemocratização do Brasil, os povos indígenas foram reconhecidos como parte fundamental de nossa nacionalidade. A constituição de 88, com todos os seus limites, reconhece os direitos dos povos indígenas e determina a demarcação de suas terras; determina, ainda, que haja uma forma singular para prestação de serviços a estas populações. Os indígenas têm uma singularidade que precisa ser respeitada. O trabalho de implantação da política prevista não foi satisfatório nos primeiros anos, mas avançamos muito. Isso se reflete nas demarcações de terra, isso se reflete na saúde, na educação, mas nos últimos anos tem sido grande a pressão de setores dessa elite a que me referi para que o Estado não cumpra este seu papel constitucional.
Este assunto não interessa só aos povos indígenas. A questão indígena interessa a todo cidadão e cidadã de bem do Brasil. Estou convencido de que não há possibilidade de construirmos uma democracia em nosso país se os povos indígenas não virem assegurados seus direitos fundamentais: direito à terra, direito à cultura, direito à saúde, direito à educação. Os indígenas são parte fundamental de nossa formação.
Juca Ferreira
Ministro da Cultura