Juca: “Tratamos todo o mundo simbólico como parte da cultura”

Discurso feito pelo ministro Juca Ferreira na posse do Pleno do CNPC, realizada no dia 16.12.2015, em Brasília
Hoje, (dia de posse do Pleno do Conselho Nacional de Política Cultural), é um momento de alegria. O processo é muito importante e foi feito com muita emoção e muita consciência por parte do Ministério.
No auge da gestão Gil-Juca, nós conseguimos mobilizar 6 mil pessoas para participar da eleição do Conselho. Desta vez, nós conseguimos mobilizar 70 mil pessoas. É impressionante. Nós postamos o convite para participar do processo, postamos na internet e 20 milhões de pessoas acessaram o nosso convite, sem propaganda, sem nada. O Ministério da Cultura está bem, bastante bem. Recuperamos o vigor e a vitalidade, o significado do Ministério num momento muito difícil da vida política nacional, de perda de credibilidade, de um mal-estar, de uma irritação por parte da população, crise econômica, crise de instituições importantes para o funcionamento da democracia, mas a gente do Ministério, nós não nos sentimos atraídos pela crise.
A crise é como um buraco negro, se você olha muito ou você cai naquele vazio que os físicos não conseguem explicar pros leigos, como eu, que não sei o que é aquilo, não matéria, anti-matéria, mas é difícil de entender. A crise também, a nossa crise, é difícil, ou então gera perplexidade. A perplexidade é um problema hoje. O governo precisa funcionar, precisa trabalhar, trabalhar para enfrentar a crise econômica, trabalhar para evitar o descrédito, trabalhar. Então o melhor que a gente fez foi optar por ser um Ministério pós crise.  Nós temos lastro pra isso, desde 2003 nós temos sido republicanos.  Aqui não há favorecimento, apadrinhamento nem perseguição.
Uma coisa que chama atenção é que nunca a liberdade de expressão foi tão exercitada no Brasil como de 2003 pra cá. Eu duvido que apareça alguém que foi perseguido, descriminado pela opinião. Não vai aparecer, a não ser que seja uma maledicência e uma postura propositalmente negativa. Nós fomos radicalmente fundo na ideia de que o Estado tem que garantir liberdade de expressão para que a gente possa enfrentar os nossos desafios. A segunda coisa é que, além de republicanos de garantir a liberdade de expressão, nós perseguimos a democratização da gestão cultural no Brasil.
Essa constatação que tem poucos negros aqui, que há pouca participação dos negros, a necessidade de afirmar a contribuição que os que vieram da África, escravizados e seus descendentes deram e dão para a cultura brasileira é fundamental. Como é também afirmar a contribuição que os povos indígenas deram e dão para a cultura brasileira. E afirmar essa contribuição e, portanto, incorporá-la, eu digo incorporá-la porque quando nós chegamos ao Ministério em 2003, o Ministério não se relacionava com as culturas dos povos indígenas brasileiros.
É impressionante, a não ser assistematicamente, aqui e ali, mas não havia um reconhecimento da importância, não havia reconhecimento da necessidade de lidar com a diversidade cultural brasileira, ou seja, com essa complexidade que é este país. 53% da população é negra. Trata-se de auto reconhecimento, porque o IBGE não classifica, apenas pergunta. Numa sociedade que discrimina, desprestigia, que não reconhece o fato de 53% dos brasileiros se dizerem negros, isso significa que o número é muito maior e que, certamente, nas próximas pesquisas, com um nível de consciência maior e com avanços na construção de igualdade maior, a gente vai chegar a um número bem maior de negros que o de hoje.
Então, nós democratizamos o conceito de cultura, não só no sentido antropológico, social, nós conseguimos sair de uma identidade reducionista onde cultura e arte é a mesma coisa e usamos todo o legado da antropologia e de outras ciências e passamos a tratar todo o mundo simbólico como parte da cultura, valores, fazeres, saberes, tradições. Não inventamos nada, mas o Estado brasileiro frequentemente é o último a saber e nós tivemos que trazer para as políticas culturais essa noção mais complexa de cultura.
O Ministério da Cultura passou a trabalhar os pontos de Cultura, ou seja, valorizar esses mais de cem mil grupos culturais que existem nas periferias das grandes cidades, nas cidades de médio porte, nas áreas rurais, nas aldeias indígenas, porque essa é a base da cultura brasileira e gera uma diversidade. A valorização da contribuição para a sociedade brasileira dos povos indígenas e dos descendentes dos africanos que vieram escravizados para o Brasil não nega que nós somos de uma complexidade impressionante.
Nós temos a maior colônia japonesa do exterior, nós temos mais de 500 mil eslavos e imigrantes de origem eslava da Ucrânia e de outras regiões. Nós temos latino-americanos. A quantidade é enorme e de São Paulo para baixo essa presença de novos fluxos de migração são importantes e precisam ser considerados num momento que você está trabalhando a valorização da diversidade cultural brasileira.
Isso não quer dizer que nós somos uma espécie de geleia disponível, mas é evidente que, no campo da cultura, não é fixa. Toda vez que quiser fixar a identidade cultural, o conceito deixa de ser importante e passa a ser uma dificuldade. Cada vivência, cada nova informação, cada processo migratório muda os processos de identidade tornando-os mais complexos, mais profundos, mais amplos. Uma vez, eu estava em um evento, e levantou um camarada que era tão loiro que o cabelo era quase branco e disse assim: “Eu faço parte de uma minoria discriminada”. Ele disse: “Eu sou terceira geração de finlandeses, ou seja, é brasileiro de origem finlandesa e o governo do estado não reconhece essa parte da cultura brasileira e, portanto, eu não tenho oportunidades de usar os equipamentos públicos. Não quero abandonar as minhas origens culturais”. E nós tivemos que fazer um discurso que o mais generoso era incorporá-los como parte desse Brasil que emerge com essa complexidade de difícil conceituação, difícil de lidar, mas é profundamente necessário porque isso é parte da democracia contemporânea.
A democracia contemporânea se baseia na velha tradição democrática de direitos e oportunidades iguais para todos, mas um direito à singularidade, o direito à oportunidade, a importância da diversidade cultural para estruturar uma sociedade que de fato seja generosa com todos independentemente das suas particularidades. Isso nós temos honrado aqui no Ministério. Hoje, a relação com os povos indígenas é uma relação permanente, constante, que interpassa quase todas as secretarias e programas do Ministério a tal ponto que outros ministérios que têm a obrigação de cuidar da questão indígena não deram tanta importância. Muitas das lideranças indígenas reconhecem no Ministério da Cultura sua principal relação com o governo federal, o que é pra gente difícil, porque não temos o poder de polícia, não temos poder de fazer demarcação da terra indígena apesar de ser  profundamente necessária, mas é importante garantir a possibilidade da existência dos povos indígenas sem precisar abrir mão dos hábitos culturais e das suas posturas diante do mundo que são obrigados, como nós, a enfrentar o complexo diverso de crise de valores e com toda essa complexidade que é o século XXI.
Então essa credibilidade que foi manifestada neste processo eleitoral é uma credibilidade que foi construída desde 2003 e mais nós temos um respeito absoluto a coisa pública aqui no Ministério. As maledicências generalistas que tentam transformar todo servidor público em suspeito, como se fossemos os mordomos da história, aqui não pega porque a gente amplia cada vez mais a transparência e esses mecanismos que foram descritos aqui hoje vão ampliar ainda mais a transparência. O gabinete digital vai ampliar ainda mais a transparência. E a transparência não é só a disponibilização de dados. É não chamar Jesus de Genésio. De três dias pra cá tem entrevista minha, tem entrevista do presidente da Fundação Nacional das Artes, a Funarte, reclamando dos recursos orçamentários insuficientes para gente dar conta do nosso trabalho. Em certos momentos, nós estamos representando o governo junto à área cultural, mas o tempo inteiro nós nos sentimos conscientes de representar a área cultural dentro do governo. A consciência dessa dupla missão nos obriga a ser muito mais representantes da cultura no governo do que representantes do governo na cultura.
Este processo de convocação do Conselho Nacional de Políticas Culturais é pra valer. Nós vamos compartilhar a formulação das políticas, a execução de políticas e a formulação de novos processos que irão dotando o Brasil de uma política complexa, ampla e generosa. É evidente que isso não é só participação – precisamos de base técnica, precisamos de procedimentos administrativos qualificados e precisamos de recursos. Nisso, sistematicamente eu fui chamado a atenção no governo, porque na verdade a série histórica no Brasil é muito ruim em relação à cultura. O Ministério já estava beirando os 20 anos e ainda não existia. A verdade é essa. O Ministério era para grandes personalidades passarem a chuva enquanto não tinham ainda um destino certo. Até o nosso grande Celso Furtado veio aqui para ajudar a construir políticas econômicas, porque na verdade a contribuição foi pequena comparado com a grandeza do seu pensamento e da sua lucidez. Evidentemente que um homem daquele gerou algum produto. Estou citando ele como exemplo, mas, se nós analisarmos, um dos maiores… é um documento sobre economia e cultura, essa relação importante, ele foi um precursor no nível do Estado brasileiro, na formulação da importância de trabalhar a cultura também como uma economia estratégica para um país.
Mas nós conseguimos… O primeiro esforço foi esse que eu descrevi de alargar o conceito de cultura. Não dava para trabalhar num país tão rico culturalmente – com tal complexidade cultural, diversidade, riqueza – trabalhar com parâmetros que identificam a cultura com a arte já consagrada. A gente escancarou, a tal ponto que uma jornalista do jornal mais vendido do Brasil, em um momento em que nós estávamos  trabalhando uma política com a arte sinfônica, disse “agora é menos funk e mais música de concerto”. E eu disse “não, a senhora não entendeu, é mais funk e mais concerto”.  Porque não cabe ao estado definir o que é relevante.
O funk é o gênero preferido nas favelas e nas periferias do Brasil. Por algum motivo suplantou todos os outros gêneros, inclusive o enraizado samba, por exemplo, e outros gêneros já bastante enraizados há mais de um século. E é expressão dessa juventude negra que foi descrita aqui, sofrendo um processo de genocídio, sendo acossada o tempo inteiro pela polícia, que desrespeita os direitos mais elementares dessa população, particularmente os jovens. Eu estou insistindo nisso porque gestão cultural não se faz no vácuo. O contexto político, o contexto social é fundamental para definir prioridades. Nós temos que ter essa lucidez. Pode ser que daqui a um século, quando a nódoa da escravidão não estiver mais presente entre nós – estou citando Joaquim Nabuco que disse que durante séculos nós, os brasileiros, iríamos conviver com a nódoa da escravidão – pode ser que não seja mais importante segmentar, e valorizar, e ter política afirmativa. Mas, hoje é.  Hoje é. Hoje é fundamental para construir de fato uma democracia cultural e uma democracia em termos amplos: reconhecer as desigualdades estruturais da sociedade brasileira – e o Estado tem a obrigação, o Estado Democrático tem a obrigação e é previsto na nossa Constituição trabalhar no sentido de reduzir e criar uma sociedade de iguais de fato, iguais em direitos, iguais em oportunidades –, e permitir e estimular que a diversidade seja a grande riqueza desse país.
Nós temos avançado em muita coisa. A política, por exemplo, do cinema, hoje, se nós compararmos como era quando chegamos em 2003, era 6 filmes por ano no Brasil. Hoje, são quase 150 filmes por ano. Hoje nós temos mais dinheiro pro cinema e para o audiovisual brasileiro do que na época da Embrafilme. Hoje o cinema brasileiro está ganhando qualidade, ganhando público, ganhando festivais internacionais, tudo isso é fruto de uma política pública que foi sendo construída junto com os cineastas, com muita discussão, muita divergência. Em certos momentos, os cineastas não compreenderam algumas propostas, como por exemplo descentralizar os recursos pro cinema. Alguns cineastas do Rio e São Paulo diziam “mas é uma atividade industrial, nós temos que concentrar”. Não, nós não temos que concentrar. Nós temos que desconcentrar e na atividade industrial que seja preciso concentrar, a gente concentra. Laboratórios, coisas desse tipo. Mas, a criatividade não pode ser concentrada, o Estado tem a responsabilidade de permitir que todos os brasileiros de todas as regiões, todos os artistas dos quatro cantos do Brasil tenham possibilidade de desenvolver sua criatividade e expressar essa complexidade cultural que se manifesta de forma diferenciada no nosso território.
Hoje temos um cinema para ninguém botar defeito e nas reuniões internacionais é senso comum de que temos a política do audiovisual mais robusta do mundo neste momento. Não temos a maior cinematografia, não temos o cinema com mais público, mas vamos conquistar esses índices. Mas temos o maior investimento público  no sentido de alavancar uma atividade fundamental. E quando eu falo cinema, eu estou falando cinema e audiovisual, a conquista de todas as telas.
Foi da nossa lavra a lei que regulamenta a presença do conteúdo audiovisual brasileiro nas televisões, fechadas, por assinatura e hoje já – ainda não estamos anunciando porque vamos fazer uma pesquisa detalhada – a atividade cinematográfica e de audiovisual no Brasil já é superavitária, está gerando mais recursos do que os recursos que o governo investe na atividade.
Isso é importantíssimo, inclusive para dar uma lição, para ensinar, para mostrar que cultura é investimento, não é despesa. Nós temos possibilidade de ir muito mais longe na música, porque é o que a gente faz de melhor, junto com o futebol, no Brasil. E ela foi, a indústria fonográfica se desestruturou e, com ela, desestruturou todo o sistema econômico que dava visibilidade, com vários limites, mas dava visibilidade, à música brasileira.  A reestruturação de todo esse território vai precisar do Estado para criar o ambiente favorável para regular, para fomentar, para incentivar, para criar os mecanismos que possibilitem que de fato a gente tenha de novo a possibilidade de desenvolvimento na área da música.
Eu citei a música, mas não vou citar de um em um. Porque a cultura, o Ministério da Cultura –  eu de vez em quando brinco na reunião de ministros: “eu adoraria dirigir um ministério como o Ministério dos Transportes que é planejar, construir e manter estrada” – a complexidade da cultura não permite essa coisa linear. Aqui tem arte-educador, arte popular, tem memória, tem incentivo, é uma infinidade de frentes que não possibilitam que a gente escolha algumas e deixe outras. Ou a gente cuida do conjunto ou então a gente não dá a contribuição que a sociedade e a cultura brasileira precisam.
Então, nós estamos construindo isso, não há possibilidade de construir política pública de cultura dentro de gabinete de repartição pública. Nós precisamos de participação direta dos artistas, dos criadores, dos que fazem cultura, dos que investem em cultura, dos que divulgam, dos que promovem. É um universo muito complexo. Alguns com uma visão meio romântica: basta o cara escrever ou compor uma música que está feita. Não é não. Uma coisa dessa vai entrar numa cadeia produtiva altamente complexa para ter competitividade com o que chega do exterior, com o nível, com o padrão com que é oferecido. A gente precisa ter padrão também. Não precisa copiar o padrão dos outros, mas a gente precisa ter padrão também para poder ser bem sucedido e que conte com a cumplicidade da sociedade brasileira na afirmação dessa nossa cultura.
Então, nós estamos vivendo um bom momento no Ministério, eu diria que o Ministério hoje é melhor do que em qualquer outro período, inclusive no período dos oito anos do presidente Lula, onde nós fomos extremamente inventivos. Estamos trabalhando com a ideia de que um dos legados que nós temos que construir é a eficiência e a eficácia deste Ministério. Nós estamos aprimorando – não sei se vocês repararam, a área meio está ali também, são pessoas fundamentais para a construção desse ministério eficiente e eficaz.  Os procedimentos. Simplificar os procedimentos, obviamente dentro da lei. Facilitar que os processos de afirmação desse conjunto de políticas tenham um fluxo, o mais leve possível dentro das dimensões administrativas e burocráticas. Isso é para dentro.
Agora, para fora, hoje é um momento importante. Eu trouxe um balanço do que nós já estamos construindo e de algumas perspectivas, mas até pela apresentação do meu amigo (Vinícius) Wu, eu não vou fazer a minha porque ninguém vai conseguir ver. Farei na primeira reunião ordinária do conselho, uma apresentação de que estágio o ministério está para vocês terem a possibilidade plena de criticar, contribuir e acrescentar, fazer de tudo que a representação de vocês dá poder e dá direito.
Sei que participar de um conselho desses é trabalhoso, nos tira da nossa zona de conforto. Uma pessoa, por exemplo, como o Milton, um artista consagrado, vir aqui dar a sua contribuição exige o nosso reconhecimento e eu vou pedir palmas a ele.
Então, as pessoas têm todos os tipos de privações, de trabalho, mas dar essa contribuição é importante. Porque a cultura é fundamental para um projeto de nação. Eu não acredito que o Brasil seja capaz de enfrentar os desafios do século XXI, nem os internos. Nós estamos vendo aí a crise em que a gente está metido.  Parte dessa crise é falta de educação. É falta de respeito ao outro. Falta de consciência da diversidade humana, da necessidade de respeitar as crenças alheias, os direitos alheios. É a usura. Tudo isso é fruto de uma sociedade mal formada. E eu concordo com alguém que disse aqui que a educação é fundamental. A educação e a cultura. É fundamental também disponibilizar o acesso pleno à cultura. Boa parte da cultura a população já faz, mas a parte que ela não faz, o Estado tem a obrigação de dar acesso.
Eu estive na Inglaterra na época da Margaret Thatcher, passei por lá. O auge do neoliberalismo. Os teatros funcionando, as bibliotecas funcionando, os centros culturais funcionando, as políticas de fomento funcionando. Porque trabalhar com desenvolvimento cultural não é uma coisa de esquerda ou direita, é uma coisa de civilização ou barbárie. A contradição é essa.
Muito obrigado.
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