Por Alexandre Santini
“Um fantasma vestido de palhaço percorre a América Latina: o fantasma da Cultura Viva Comunitária” (Ivan Nogales, teatrólogo boliviano)
Ao nos debruçarmos sobre o panorama das políticas culturais no continente latino-americano, nos confrontamos com a construção histórica do conceito de América Latina enquanto uma unidade política, territorial e cultural. Pensar a América Latina é uma tarefa complexa. O escritor argentino Jorge Luis Borges afirmou em uma entrevista:
“Os únicos europeus somos nós, os latino-americanos, que vemos a Europa como uma totalidade da qual nos sentimos herdeiros, enquanto ninguém na Europa se sente europeu, senão espanhol, francês, sueco ou alemão”.
Algo semelhante ocorre ao pensarmos a questão latino-americana. Para além de um olhar idealizado e utópico do “Sonho de Bolívar”, da América Latina como uma “pátria grande”, política e culturalmente homogênea, a realidade nos defronta com um continente heterogêneo, desigual quanto aos seus níveis de desenvolvimento, com âmbitos e perspectivas nacionais distintas e em alguns casos díspares, e com agudas contradições internas entre nossos países e nossos povos.
No entanto, podemos indagar quais seriam os elementos unificadores para uma narrativa comum da América Latina. Estes certamente existem. Questões históricas, políticas e culturais que nos unem, uma unidade linguística que abrange quase a totalidade dos países da região, mas sobretudo problemáticas comuns em questões políticas, sociais e culturais que incitam a procura por uma visão de conjunto. A unidade latino-americana é sobretudo um devir, um projeto político que dá norte e substância a um discurso, a uma construção histórica em desenvolvimento.
É neste contexto que experiências muito recentes de políticas culturais baseadas no conceito de “Cultura Viva Comunitária” em diversos países e cidades latino-americanas, inspiradas pelo Programa Cultura Viva e pelos Pontos de Cultura do Brasil, nos permitem identificar a construção de um repertório comum para se pensar as políticas culturais no contexto latino-americano, no que diz respeito à relação da cultura com temas como identidade, território e comunidade.
O Brasil no contexto latino-americano das políticas culturais: Cultura Viva
Historicamente, o Brasil esteve à margem de importantes processos políticos e culturais na América Latina. Seja pela barreira do idioma, pela herança colonial distinta, e pelas demais características que diferenciam o Brasil dos demais países do continente, a imagem de um país construído “de costas” para a região foi se construindo como metáfora geográfica de uma posição geopolítica. Embora a nossa história recente, em particular no que toca a instabilidade das instituições democráticas, interferência externa na condução das políticas econômicas, dependência comercial e cultural, tenha uma relação direta com o processo histórico da região, em termos de políticas de governo e estratégias de desenvolvimento econômico e social, o nosso país manteve uma relação distante e alheia às políticas desenvolvidas nos países latino-americanos. O panorama é o mesmo em relação às políticas públicas de cultura, que no Brasil, segundo Rubim(2011), são historicamente marcadas por “ausência, autoritarismo e instabilidade” (p.22) Para se ter uma ideia, o Ministério da Cultura, criado em 1985, teve 10 gestores diferentes nos primeiros 10 anos de existência do órgão, chegando mesmo a ser extinto e transformado em secretaria durante o governo Collor (1990-1992).
Esta realidade começou a mudar sensivelmente nos últimos 12 anos. A gestão do Ministério da Cultura de Gilberto Gil e Juca Ferreira durante o governo Lula possibilitou o florescimento de um amplo ecossistema de experiências sociais e culturais que, a partir da arquitetura de redes engendrada pelo Programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura, ganharam visibilidade, escala e articulação nacional, possibilitando o surgimento de novos fluxos culturais no país. Em seu discurso de posse como ministro da Cultura, Gilberto Gil afirmou que sua gestão à frente do MinC faria:
“(…) uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo. Porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares, informações e tecnologias de ponta”(2003).
O Programa Cultura Viva1 foi criado em 2004, pela Portaria n. 156, de 06 de julho de 2004, sob a coordenação da atual Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural (SCDC), do Ministério da Cultura (MinC), com a finalidade de fomentar e valorizar circuitos culturais já existentes por meio de ações de articulação, e do repasse de recursos para organizações da sociedade civil com ações culturais, denominadas pelo programa como Pontos de Cultura. Expressões da metáfora tropicalista do “do-in antropológico”, os Pontos de Cultura iriam massagear pontos vitais do corpo cultural do país.
O Cultura Viva tem como um de seus pressupostos adotar uma gestão compartilhadacom o objetivo de estabelecer novos parâmetros de gestão e democracia entre Estado e sociedade. Cabe ressaltar que esta iniciativa de envolver novos e diversos atores na discussão das políticas culturais surgiu do executivo. No entanto, uma das características do programa é que ele promoveu a interação entre essas diversas organizações com perfis distintos por meio de redes, sejam elas presenciais ou virtuais, encontros seminários, fóruns regionais e nacionais, como os “encontros de conhecimentos livres” (2004 e 2005), as TEIAS regionais e nacionais (2006, 2007, 2008, 2010, 2013), além de inúmeros outros fóruns, encontros, seminários e congressos e demais iniciativas públicas ou autônomas que reúnem e articulam a rede de pontos de cultura no Brasil.
Um dos principais méritos da criação destes ambientes de interação política é que eles aludem – o que implica dizer que não o realizam plenamente – a processos de deliberação pública, espaços de acordo para tomada de decisões envolvendo o estado e representantes organizados da sociedade civil. Processos como este reconhecem, segundo a pesquisadora colombiana Luisa Fernanda Cano (2010).
“La importancia de la dimensión política de las políticas públicas, con la necesidad de reconocer en el diálogo y en los argumentos, el espacio por naturaleza para la construcción de lo público, para la deliberación frente las soluciones y las decisiones de política.”
Podemos dizer que este exercício esteve presente no processo de implementação do Programa Cultura Viva, ainda que a chamada “gestão compartilhada” seja ainda uma evocação, um caminho a ser construído, em meio às inúmeras dificuldades oriundas de um aparelho de estado formalista e burocratizado, que não está preparado para experiências de democratização, abertura e transparência da gestão pública.
Estas relações entre o público e o estatal, entre cultura e política, entre políticas públicas e espaços de organização autônoma da sociedade civil, presentes no Programa Cultura Viva, foram fundamentais para aproximar a experiência brasileira da realidade de outras cidades e países latino-americanos. O primeiro contato de agentes culturais latino-americanos com esta política desenvolvida no Brasil foi durante o Fórum Social Mundial realizado em Belém do Pará, no ano de 2009. Na ocasião, o Ministério da Cultura do Brasil organizou, em parceria com o Instituto Pólis (SP), uma mesa de diálogo intitulada “Pontos de Cultura: Políticas Públicas e Cidadania Cultural”, que reuniu uma centena de participantes, entre representantes de Pontos de Cultura do Brasil e de diversas organizações culturais comunitárias da América Latina.
No mesmo ano, em Brasília, é criada a Articulação Latino-americana Cultura e Política (ALACP), que entre outras iniciativas subscreveu um projeto de lei apresentado ao parlamento do Mercosul pela então senadora brasileira Marisa Serrano, recomendando aos países membros do bloco a criação de um programa de Pontos de Cultura em escala regional. Diversas iniciativas de criação de legislações culturais e desenvolvimento de políticas públicas baseadas no conceito de Cultura Viva Comunitária começam a acontecer em cidades com Buenos Aires (Argentina), Medellin (Colômbia) e em países como Peru, Costa Rica e Guatemala.
Em 2010, um encontro na cidade de Medellín reuniu 100 organizações culturais comunitárias da América Latina que se articularam em uma rede continental denominada “Plataforma Puente Cultura Viva Comunitária”. Em maio de 2013, esta rede organizou o I Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária na cidade de La Paz, Bolívia, reunindo cerca de 1200 participantes de 17 países do continente. No ano de 2014, o Congresso Ibero-Americano de Cultura, organizado pela Secretaria Geral Ibero-Americana (Segib), que reúne os governos dos 21 países latino-americanos, além de Portugal e Espanha, acontecerá na Costa Rica tendo como tema central a “Cultura Viva Comunitária”.
As organizações e coletivos culturais comunitários são uma realidade em todo o continente latino-americano. Estima-se que são mais de 120 mil em todo o continente. sejam rádios, grupos de teatro, museus dos bairros, bibliotecas, festas populares, circo… Não existe nenhum lugar no continente, seja uma pequena cidade ou uma vila ou comunidade, onde não existam estes grupos ativos que, através do jogo, da criação cultural, da comunicação popular e das celebrações comunitárias, buscam sensibilizar o espaço público de seus territórios e convocar a participação coletiva. Mais de 200 milhões de latino-americanos participam destas atividades culturais comunitárias em repetidas ocasiões durante cada ano.
Definindo Cultura Comunitária
Organizações culturais comunitárias são aquelas que se definem por uma ação cultural, educacional e/ou de comunicação popular vinculada a um determinado território, que desenvolvem processos culturais permanentemente e não estão diretamente vinculadas ao âmbito estatal ou ao mercado de bens, produtos e serviços culturais. A autonomia em relação ao Estado, por sua vez, não prescinde de um processo de organização política autônoma entre si e junto a outros setores da sociedade, nem tampouco de uma incidência concreta juntos aos estados nacionais em busca de políticas públicas para o setor. Nas múltiplas experiências de Cultura Comunitária na América Latina, cabe destacar a valorização que as organizações envolvidas fazem do papel estratégico do Estado como agente implementador de políticas públicas.
No documento de convocatória ao I Congresso de Cultura Viva Comunitária, assinado pela rede Plataforma Puente (2013), fica clara a importância estratégica que o movimento atribui ao Estado, especialmente no que diz respeito ao financiamento da cultura e à adoção de mecanismos legais que reconheçam e apoiem as organizações culturais comunitárias:
“No continente, frente à indiferença dos sistemas instituídos da Cultura, os processos de articulação desses coletivos foram adquirindo um olhar comum; e nos últimos anos, essa visão se tornou mais nítida e provocadora. É que, sem importar a linguagem que cada iniciativa utiliza, todas compartilham seu caráter de expressões coletivas e culturais de uma sociabilidade distinta. Estas organizações, comuns e diferentes entre si, articuladas em rede, deram forma à Plataforma Ponte Cultura Viva Comunitária, que concentrou seus esforços em dar corpo a uma campanha continental que sinalize que estes grupos devem ser reconhecidos pela esfera estatal e serem objetos do apoio público e econômico dos seus governos. Como dizem seus documentos, “não desenvolvemos uma atividade privada, e sim uma vocação publica não estatal, que luta por outra vivência do espaço compartilhado”(…). Um olhar rápido sobre o trabalho desses grupos justifica a demanda; enquanto milhares de jovens de todos os bairros e subúrbios da América Latina encontram nestas iniciativas (rádios, bandas, escolas populares de arte) um lugar de aprendizagem e expressão opostos as ofertas de violência e narcotráfico, não existe nenhuma lei nacional no continente que ampare e fortaleça as organizações culturais comunitárias. Um despropósito que chama a atenção.” (2013, tradução nossa)
O desenvolvimento do conceito original do programa Cultura Viva no Brasil para a ideia de Cultura Viva Comunitária em cidades e países da América Latina fortalece e consolida a dimensão comunitária e territorial desta política cultural. O acordo municipal que estabelece as bases para uma política de Cultura Viva Comunitária na cidade de Medellín, Colômbia, propõe a seguinte definição para as organizações culturais comunitárias:
“Aquellas expresiones artísticas y culturales que surgen de las comunidades, a partir de la cotidianidad y la vivencia de sus territorios. Las experiencias de formación humana, política, artística y cultural que reconoce y potencia las identidades de los grupos poblacionales, el diálogo, la cooperación, la coexistencia pacífica, y la construcción colectiva, hacia el respeto de los derechos de las personas y el mejoramiento de la democracia”. (2010)
Esta operação de adequação e ressignificação do conceito original do Programa Cultura Viva do Brasil para a realidade colombiana fica ainda mais evidente na reflexão do sociólogo colombiano Luis Alfredo Atehortúa Castro, membro da Platatorma Puente de Medellin / Valle de Aburrá:
“Cultura Viva Comunitaria, es la adopción y adaptación de la idea original de puntos de cultura, a la realidad de Colombia, empezando por Medellín con la idea de Cultura Viva que es el programa que en Brasil sostiene Puntos de Cultura, pero que en Medellín y luego a nivel nacional se retoma como Cultura Viva Comunitaria por el papel preponderante de las comunidades, por el papel de las organizaciones culturales com sus vecinos, con los beneficiarios de las dinámicas de cultura para la vida, para la defensa de los territorios y el sentido de pertenencia”. (2013)
O que fica claro é que o programa Cultura Viva e os Pontos de Cultura do Brasil inspiraram e motivaram a construção deste conceito de política cultural que hoje reverbera em diversas políticas públicas desenvolvidas em cidades e países latino-americanos, sendo que nestes países, a associação com os conceitos de território e comunidade fica marcadamente definida como o centro da estratégia de ação da política. Fica claro também que, enquanto no Brasil este programa surgiu como uma iniciativa governamental, em diversos países latino-americanos a Cultura Viva Comunitária surge como uma demanda dos movimentos culturais, tendo sido construída a partir da incidência destas organizações junto a gestores e a órgãos governamentais. Tais iniciativas fortalecem ações, redes, movimentos e circuitos culturais fora da indústria cultural e dos aparelhos de Estado, proporcionando o surgimento de novas formas de relação entre o Estado e a sociedade.
No entanto, seja na atual legislação cultural dos países da região, seja em documentos de organismos internacionais como a Unesco, os termos “cultura comunitária” ou “organizações culturais comunitárias” não existem e não são mencionados. O conceito que compreende este universo é o de “diversidade cultural”, amplamente utilizado nas legislações nacionais e reconhecido internacionalmente através da “Convenção sobre a promoção e proteção da diversidade das expressões culturais” da Unesco (2005), texto ratificado pelo governo brasileiro por meio do decreto legislativo 485/2006. Contudo, o documento não faz menção a organizações culturais comunitárias.
A inclusão da diversidade cultural como marco estruturante de políticas culturais no continente latino-americano é uma conquista recente e de fundamental importância. No entanto, é demasiado abrangente para precisar a especificidade e a dimensão da ação das organizações culturais comunitárias. São ainda muito poucos e incipientes os estudos acadêmicos sobre o tema, o que confere necessidade a um esforço de sistematizar estudos e pesquisas que vêm se realizando também por investigadores, ativistas e gestores culturais do Brasil e de diversos países da América Latina.
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