Utilizar-se da arte e da comunicação para a quebra de paradigmas, compreendendo tais áreas como potentes meios de transformação social e cultural. É essa a base do Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, organização não governamental (ONG) de Porto Alegre (RS) reconhecida como Ponto e Pontão de Cultura pelo Ministério da Cultura (MinC).
A organização nasceu em 2001, a partir da reunião de um grupo de militantes da luta contra a aids e do movimento de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT), com a proposta de desenvolver ações sociais com abordagens direcionadas exclusivamente à comunicação e à saúde. Em um momento anterior às redes sociais, hoje intrínsecas ao cotidiano, o grupo já ensaiava algumas mobilizações sobre o tema na internet.
De lá para cá, o Somos foi muita coisa. A arte, em si, chegou tímida, representada inicialmente por esquetes de caráter mais educacional e informativo. Aos poucos, ela foi ganhando espaço dentro da instituição, que passou a criar, produzir e difundir ações artísticas e culturais com abordagens temáticas de questões ligadas à diversidade de expressões da sexualidade humana, com foco na cultura LGBT. Por fim, acabou se transformando no principal instrumento de conscientização da ONG.
“Estratégias que lidam pelas vias do sensível são extremamente importantes para a quebra de paradigmas e essenciais para acabarmos com o preconceito. Percebemos, por exemplo, que um espetáculo sobre travestilidade é muito mais potente e se faz ouvir muito mais do que um discurso político propriamente dito ou um material informativo”, afirma Sandro Ka, diretor financeiro do Somos e também responsável pelas iniciativas de comunicação e cultura. “As cenas ali apresentadas continuam reverberando dentro daqueles que a presenciaram, colocando suas convicções em cheque. A arte possibilita que enxerguemos a vida com outros olhos e saiamos do lugar comum. É algo que funciona de dentro para fora e acaba mudando o nosso jeito de pensar e agir”, destaca.
Em 2005, a ONG foi reconhecida como Ponto de Cultura. O grupo possuía um centro de documentação com centenas de livros e filmes que tratavam de direitos humanos e diversidade sexual. O projeto vencedor do edital tinha como intuito justamente a ampliação desse acervo, em volume e acessos. Na ocasião, a organização saiu em caravana pelo estado do Rio Grande do Sul, realizando apresentações e debates sobre o tema.
Tempos depois, em 2009, o Somos ganhou o selo de Pontão de Cultura, quando passou a articular um conjunto de iniciativas culturais, desenvolvendo ações de mobilização, formação e mediação não apenas em Porto Alegre, mas também em âmbito nacional. O grupo passou a oferecer oficinas e workshops de linguagens diversas, dentre as quais cinema, dança e teatro, com uma abordagem transversal, que sempre tocava em questões de gênero e diversidade sexual.
Mapeamento cultural LGBT
Outro braço do Pontão definiu-se por um mapeamento cultural LGBT, que consistia em visitas in loco a diversas cidades brasileiras – entre capitais ou municípios emblemáticos para a cena LGBT – para o registro de manifestações artísticas e culturais vinculadas e representativas da população LGBT. “Tínhamos o objetivo de fazer um levantamento inicial sobre a produção artística e cultural desse público, possibilitando, assim, uma mirada para o que se produz de qualidade dentro desse segmento, fundamental, inclusive, para a criação de uma identidade”, afirma Sandro.
O diretor conta que, pelo projeto, passou por 18 cidades brasileiras, nas quais pode presenciar e registrar um cenário significativo de arte transformista e paradas do orgulho LGBT, principalmente. Apesar da qualidade, entretanto, Sandro pode enxergar algumas fragilidades. “Já há muita produção legal e de qualidade, mas que, ao mesmo tempo, é muito frágil. Principalmente porque a memória dessa produção é muito frágil. Muita coisa se perde com o passar do tempo”, diz.
O grupo possui uma série de registros da arte ligada à cultura LGBT de todo o País, entre textos, fotos e vídeos, produzidos a partir dessas visitas. Segundo Sandro, a ideia é disponibilizar tudo isso para consulta on-line, até mesmo para garantir a memória das ações.
Pontão de cultura
Enquanto Pontão de Cultura, o Somos promoveu e articulou uma série de atividades culturais, que atravessaram não apenas as fronteiras da instituição, mas, gradativamente, do estado e do País. Bailarino e drag queen há mais de 18 anos, Nilton Júnior chegou a ministrar oficinas de dança no Somos. Em perspectiva, ele acredita que a efervescência cultural nutrida pela ONG há alguns anos foi fundamental para a identidade e a promoção da cultura LGBT de Porto Alegre.
“Propiciei caminhos para que eles se sensibilizassem e descobrissem seu próprio potencial artístico. Sob preceitos da dança contemporânea, trabalhávamos muito com expressão corporal. As oficinas não tinham nada a ver com drag queen e, ainda assim, muitos acabaram retomando ou seguindo uma trajetória artística posteriormente. O que sempre disse é que se tinham algo para dizer para o mundo, seria sempre possível encontrar um modo de expressão artística para isso. Acho que o meu papel, nesse sentido, foi justamente o de plantar uma sementinha”, diz.
Eduardo Guedes foi um desses alunos. Hoje DJ, drag queen e produtor cultural, ele afirma que, apesar de ter sempre nutrido um interesse especial pela arte performática de se travestir, foi no Somos que isso realmente começou a se concretizar. Muito ligado à organização, ele chegou a frequentar oficinas e workshops não só de dança, mas também de teatro, cinema e fotografia.
“Graças aos Somos que eu sou o que sou hoje. Foi ali que eu e muitos outros colegas começamos a ter consciência de que não havia nada de errado em sermos gays. E acho que a dança e o teatro, principalmente, tiveram um papel essencial nesse processo, pois exigiam que botássemos a cara ao sol e encarássemos a nós próprios. Eles permitiam uma expressão que acabou por me libertar”, conta.
Também enquanto Pontão de Cultura, o Somos criou, em 2010, o Close – Festival Nacional de Cinema da Diversidade Sexual, que inclui uma mostra de cinema competitiva com curtas-metragens brasileiros e a exibição de filmes que tratam da temática LGBT. O curta Eu não quero voltar sozinho, precursor do longa Hoje eu quero voltar sozinho, foi um dos principais destaques da primeira edição do festival.
Atualmente, a mostra integra o circuito alternativo LGBT, consolidando-se, inclusive, como a mais importante referência da produção do audiovisual brasileiro sob a temática da diversidade sexual. Apesar do recorte temático, como qualquer outro festival de cinema, a premiação segue preceitos técnicos.
Parceria que ganhou asas
Em meio a suas andanças pelo País como representante e investigador da cultura voltada à diversidade sexual, Sandro Ka conheceu Silvero Pereira, ator, produtor e diretor teatral ligado à cultura LGBT do Ceará e também integrante do coletivo artístico As Travestidas. Os pontos de encontro entre os dois produtores culturais foram claros desde o início, assim como o desejo de uma parceria. Os quase 4 mil quilômetros que separam Fortaleza de Porto Alegre, entretanto, dificultava um diálogo mais contínuo.
Em 2012, o MinC, por meio da Fundação Nacional de Artes (Funarte) e da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), lançou o edital Bolsa Interações Estéticas – Residências Artísticas em Pontos de Cultura. O programa tinha como objetivo apoiar projetos de diferentes segmentos artísticos por meio do intercâmbio cultural entre artistas do Brasil e a rede de Pontos de Cultura.
Entre os 52 projetos que foram contemplados pelo edital, estava o BR-TRANS: Cartografia Artística e Social do Universo Trans no Brasil, assinado por Silvero Pereira. Durante seis meses, o artista realizou um trabalho de interação com travestis e transformistas da região Sul, além de uma pesquisa sobre preconceito, visibilidade trans e arte como instrumentos de provocação e mudanças sociais.
“Nós vivemos em uma sociedade que se diz democrática e respeitável, mas temos um dos maiores índices de assassinatos e agressões de travestis e transgêneros do mundo”, afirma o artista cearense. “Nesse contexto, conseguimos, por meio da arte, acessar e impactar a sociedade de forma mais imediata. A arte tem poder de catarse e identificação, tornando eventuais mudanças muito mais aceleradas”, conclui.
De sua interação e pesquisa, realizadas com apoio do Somos, nasceu o BR Trans, espetáculo que reuniu fragmentos reais da vida dos travestis, transexuais e transformistas com os quais conviveu nesse período, trazendo à tona histórias sobre exclusão, violência, afeto, desejos e transformações.
A peça ganhou vida em 2013 e, desde então, tem gerado uma série de frutos. O Br Trans passou por dezenas de cidades brasileiras, contabilizando, inclusive, vários prêmios em mostras e festivais. Em julho de 2015, o espetáculo representou o Brasil no International Hispanic Theatro Festival of Miami, nos Estados Unidos e, em maio deste ano, deverá ser representado na Alemanha.
Conquistas para além da arte
Apesar da forte presença do Somos na cena cultural LGBT de Porto Alegre, Sandro Ka acredita que, muito mais importante do que as movimentações em torno da arte, são as marcas que elas têm deixado na sociedade. “São pequenas conquistas que, aos poucos, vão transformando o nosso cotidiano. São passos minúsculos frente às inúmeras dificuldades que enfrentamos, mas não deixam de ser importantes”, afirma.
Para ele, mudanças comportamentais e culturais – em um sentido mais amplo, não necessariamente artístico – são as maiores conquistas da ONG, da qual participa desde 2005. Conquistas que lhe são sentidas na pele, inclusive. “Sou agente e objeto desta luta. Eu vivo as urgências pelas quais me envolvo e pelas quais trabalho. Sou agente e objeto imediato de todas as melhorias de condições de vida e cidadania geradas por essa luta. É o que me faz sentir cidadão e ter o desejo de continuar lutando”, diz.
Uma maior aceitação social e cultural da diversidade sexual, a difusão da utilização de nomes sociais e o reconhecimento de casamentos homoafetivos e da adoção de crianças por tais casais são alguns dos pequenos grandes passos que Ka acompanhou nos últimos anos.
No caso do casamento entre casais do mesmo sexo, o Somos teve papel fundamental. Isso porque, em 2011, a partir de uma ação judicial impetrada pela organização, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito ao casamento civil a um casal de mulheres lésbicas do Rio Grande do Sul, abrindo espaço para uma jurisprudência da causa.
“É ótimo poder olhar para trás e ver que muitos sonhos que pareciam utópicos acabaram por se consolidar. Hoje, temos acesso a alguns direitos, podemos andar mais livre e temos mais espaço para exercer a nossa sexualidade. Só espero que essas conquistas continuem se firmando e que os direitos iguais deixem de ser algo utópico”, afirma.
Cristiane Nascimento
Assessoria de Imprensa
Ministério da Cultura